segunda-feira, 18 de agosto de 2008

Sobre heroínas de Jane Austen e afins

Para Quito, que sempre apostou em mim como heroína de Jane Austen



Depois de assistir a “A Casa do Lago”, que comentei há uns posts atrás, li “Persuasão”, de Jane Austen, livro ao qual os personagens do filme se referem. O livro é o que atravessa a barreira temporal imposta ao amor de Kate e Alex. Outros obstáculos permeiam a história do capitão Wentworth e de Anne Elliot no livro: para não incorrer em fuga ao tema, Jane Austen cria novamente o empecilho da distinção de classes sociais. Embora tenha certeza de que a decisão vá deixá-la infeliz, Anne prefere renunciar ao amor a ir contra o que dizem as pessoas que lhe importam.



Bem menos lindo e bem menos impactante que “Orgulho e preconceito”, nem por isto “Persuasão” deixa de ser bom. Aliás, é bom porque é Jane Austen, e, dessa vez, a autora mostra uma mulher que não é altiva por natureza, mas que aprende a decidir por conta própria. E embora o final feliz da história seja bastante previsível (e por que os finais não devem ser felizes?), de repente não há absolutamente nada de errado com isso.



Gosto sempre da complexidade que Jane imprime em seus personagens principais: em meio a vários ordinários, surgem sempre os dois, confusos e com um turbilhão de sentimentos que evitam e fogem tanto que no fim desistem de fugir. E o livro todo podia se resumir nisso aqui:



"Your countenance perfectly informs me that you were in company last night with the person whom you think the most agreeable in the world, the person who interests you at this present time more than all the rest of the world put together".



Alguém criou um quiz em que dá para descobrir que heroína de Jane Austen você é. Embora eu ame Elizabeth Bennet (de “Orgulho e Preconceito”), tive de aceitar ser Anne Elliot.

Which Jane Austen heroine are you?

You scored as a Anne Elliot

You're Anne Elliot from Persuasion! You are adept at music and foreign language. You're quite reserved, and trust the guidance of your friends and relatives, but you also believe in following your heart.

sexta-feira, 8 de agosto de 2008

“Paris, Texas”: o estrangeiro de Wim Wenders

Um filme influenciado pela estética do pintor Edward Hopper não pode ser ruim. Autor do famoso “Nighthawks”, Hopper pintava os solitários: a mulher que acorda sozinha, os insones, o casal que senta junto no bar de madrugada, mas cujos cotovelos não se tocam. Foi inspirado na solidão habitual de alguns que Wim Wenders criou “Paris, Texas”.



Logo nas primeiras cenas do filme de 1984, o personagem se apresenta: Travis anda pelo deserto sem destino. Não há como não associá-lo à obra imortal de Albert Camus, “O Estrangeiro”. O livro de Camus é puro vazio existencial: exatamente como acontece em “Paris, Texas”: Travis tenta se preencher de todas as formas em sua reaproximação da vida convencional. Uma delas é descobrir como parecer um pai, quando é questionado se prefere parecer com um pai rico ou pobre. Rico, ele responde, como se pudesse comprar com isto o direito de parecer um pai.



A inexistência de emoções aparece tanto no filme de Wim Wenders como no livro de Camus: cada um à sua maneira, mas igualmente inadequados, os personagens vivem numa espécie de torpor. Tanto Mersault – de Camus – quanto Travis são indiferentes ao que o destino lhes reserva. O final de Wim Wenders, entretanto, se mostra mais beatnik que o de Camus: não lhe restando mais nada a fazer e tendo cumprido exatamente o que pretendia, Travis se entrega à sorte que lhe é inerente. A falta de perspectiva é que determina o destino do personagem, que, apesar disto, cativa o espectador.



Como se não bastasse tanto, o roteiro é assinado por Sam Shepard. Também ele empresta a alma beat de seus escritos para o filme, que é baseado num livro seu. Embora haja tanta solidão em “Paris, Texas”, o espectador é conquistado desde a primeira cena, o que faz com que não se revolte contra Travis no final. Um filme delicado sobre a não menos delicada natureza humana.


quinta-feira, 7 de agosto de 2008

A Casa do Lago e a carta do enforcado

As cartas não mentem nunca: nem as ridículas de Fernando Pessoa nem as de tarô. Faz tempo que a carta do enforcado aparece no meio do destino: é preciso um pouco de sacrifício, deixar ir embora o que precisa ir e aceitar o novo. Dar um passo adiante. Em menos de uma semana, “A Casa do Lago” e a carta do enforcado ali, pela milésima vez.



Do filme: as pessoas quase não pensam mais em trocar cartas porque não sabem mais esperar pela resposta do outro. Perguntam quase sem querer ouvir. Então, Sandra Bullock e Keanu Reeves começam a se corresponder; ele em 2004, ela em 2006. A diferença no tempo não importa tanto, o que me lembra um fragmento de Artur da Távola: “Não me refiro ao olhar apaixonado. Falo de algo além, o olhar que paralisa o outro. Que se apavora de adivinhar-se possivelmente feliz e se descobre em profundidade e espanto no poço do outro, no fundo do qual mora uma certeza nunca antes confirmada”. É o que Kate e Alex vivem: encontram sem procurar algo que esperavam para que a vida fosse mais feliz. O final nem importa tanto – afinal, não são os inícios e os meios o que a gente guarda do que é bom?



A fotografia é bonita, a trilha sonora vale a pena, e o filme é um água-com-açúcar mais sutil do que os que andam por aí, daí sua beleza. Vale também pelas referências que traz, como o livro “Persuasão”, de Jane Austen, que serve de elo entre os personagens. E a carta do enforcado entra aí: em “Persuasão”, não se fala de espera, como se diz no filme, mas de fuga: de como é mais difícil aceitar o que é bom do que se resignar com o que é medíocre ou ruim. Ou de como os amores menores nos doem menos.



Mas o filme vale a pena. É como meu avô dizia, depois de assistir a “Before sunset”: “É um tapa na cara”. O resto, ficou a cargo da carta do enforcado. E de um poema de Clarice Lispector que lembro:


Mas há a vida

Mas há a vida
que é para ser
intensamente vivida,
há o amor.
Que tem que ser vivido
até a última gota.
Sem nenhum medo.
Não mata.